O Jacque Fresco tem 96 anos e dedicou os últimos 40 ao The Venus Project, o seu plano para acabar com a fome, pobreza e guerra.

O projecto mistura teorias de engenharia civil e social que, no seu melhor, lembram a utopia de Things to Come e, no seu pior, a distopia de Brave New World.
No mundo do Projecto Vénus não existe caos e tudo é planeado ao ínfimo
detalhe, mas a variedade cultural também é mais reduzida. As cidades
parecem todas desenhadas do mesmo modo, independentemente da geografia
e/ou da cultura local.

Mas Fresco tem a sua ideia de como redesenhar, de uma ponta a outra, o
mundo e não a compromete por nada nem ninguém. Qualquer outro projecto
ou sistema político não vai longe o suficiente na resolução dos nossos
males, por mais improvável que nos pareça que um só casal isolado na
Flórida encontre todas as soluções para os problemas criados pela
complexidade humana. Entrevistei o Fresco e a sua mulher, Roxanne
Meadows, pelo Skype. A idade não perdoa e Fresco já ouve muito mal, por
isso ela teve que lhe repetir cada uma das minhas perguntas.
Acrescentei, a pedido do casal, uma legenda por baixo de cada uma das
imagens cedidas.

VICE: Olá Jacque. Podias explicar-nos, por palavras tuas, o que é o The Venus Project?
Jacque Fresco: Se queremos acabar com a guerra
precisamos de considerar este planeta como uma herança comum a toda a
humanidade. Todos os recursos do mundo precisam de ser partilhados por
todas as nações como se fossem uma só. Com as divisões de hoje, as
nações que gastam mais recursos criam problemas às restantes. Se houver
uma seca, surgem disputas territoriais pelos recursos de água. Quando os
EUA fazem guerra, não é para exportar a democracia, mas sim para obter
petróleo. E é esse o problema com todas as nações, são todas corruptas.
Temos que nos unir e partilhar os recursos da Terra. Afinal, como é que
os EUA conseguiram o seu território? Roubaram-no aos índios. E os
ingleses, que diziam que o Sol nunca se punha no seu império? Como é que
eles tinham colónias em todos os continentes? Todas as nações roubaram
território às outras.

Temos que eliminar o sistema monetário e passar para uma economia
baseada nos recursos. Se utilizarmos o dinheiro como modo de troca,
acabamos por conseguir comprar políticos, vender droga e comprar
recursos a outros países. Tem que se fazer um estudo sobre os recursos
disponíveis e, a partir daí, estudar a melhor forma de os utilizar em
conjunto, tendo toda a gente acesso às necessidades básicas para
sobreviver. Até a Bíblia diz que o amor pelo dinheiro é a raiz de todos
os males. Por isso, quando alguém diz que é impossível criar um sistema
não-monetário, eu respondo que até Jesus disse “assim na Terra, como no
Céu”. No Céu não há dinheiro, nem propriedade — pública ou privada. Não
existem classes, nem exploração.

E até chegarmos ao nosso sistema, vai haver problemas. As indústrias
apostam cada vez mais na automação de processos, o que levará milhões
para o desemprego. E esses desempregados vão ficar sem dinheiro, o que
levará o sistema monetário a colapsar. Nenhum político no mundo é capaz
de solucionar este problema. Os nossos problemas já não são políticos.
São técnicos. Em vez de treinarmos soldados para serem máquinas de
guerra, deveríamos envia-los de volta para a escola para se tornarem
solucionadores de problemas. Temos muitos problemas: cancro, doenças
cardíacas, tornados. Precisamos de os resolver e para isso precisamos de
técnicos, não de políticos. Não vás só pelo que te digo, pergunta
directamente a um político: como acabamos com a guerra? Eles não sabem.
Como podemos produzir mais comida? Não sabem. Não sabem nada. Pergunta e
verás.

Design por Jacque Fresco. Mais em thevenusproject.com

E como pensas colocar este plano em prática?
A única forma é fazer aquilo que estás a fazer. Gravar e apresentar
isto, contar o plano às pessoas. E se as pessoas não entenderem isto,
tenho pena do que acontecerá. Estamos a caminho da aniquilação nuclear,
da destruição ambiental. Eu quero mostrar que não somos um partido
político, mas que temos uma solução para os problemas através da ciência
e da tecnologia. O método científico, no The Venus Project, é aplicado à
Terra, às suas capacidades, de forma a determinarmos o número óptimo de
pessoas que podem viver no planeta. Se produzirmos mais pessoas do que
aquelas que os recursos do planeta podem suportar, só vamos ter
problemas. Digo às pessoas aquilo que elas podem conseguir com este
projecto: um mundo sem exércitos, polícias ou políticos.

Design por Jacque Fresco. Mais em thevenusproject.com

Como é que eu posso ter a certeza que a única solução é esta que propões?
Não conheço mais nenhuma organização que apresente soluções para estes
problemas. Só falam de decência e de honestidade. Mas como é que se
consegue unir as pessoas? Não passam de pessoas com boas intenções, que
falam de justiça social e mercado justo. Nada disso é realista.
Roxanne Meadows: Todos tentam resolver os problemas dentro do sistema monetário, dentro do sistema que é a causa do problema.
Jacque: Não teremos exércitos, nem leis. Todas as
condicionantes do comportamento dos humanos surgem da sociedade em que
vivem: se nasceste numa tribo de caçadores de cabeças na Amazónia, vais
acabar por ser um caçador de cabeças; se nascesses na Alemanha nos anos
30 e não tivesses acesso a livros ou qualquer coisa de fora, também
serias nazi. Não se pode culpar as pessoas, a cultura é que as força a
comportarem-se dessa forma. Por isso vamos planear uma cultura onde as
pessoas serão educadas na ciência e na sua relação com a natureza, como
comunicar uns com os outros… Até a linguagem que utilizamos foi
inventada há séculos e limita-nos o diálogo com outros povos. A escola
só te informa das coisas da tua cultura. Torna-te patriótico em relação a
essa cultura, mas todas as culturas são corruptas. E enquanto a guerra
for lucrativa, não irá acabar. Há quem enriqueça a vender equipamento
para os exércitos. A guerra é o maior falhanço das nações. Encurtar as
diferenças entre os povos não enriquece ninguém, por isso ninguém está
interessado. Gostava que as pessoas fossem mais inteligentes, para
saberem estas coisas, mas nas escolas não se ensina isso.

Design por Jacque Fresco. Mais em thevenusproject.com

Como é que financiam o The Venus Project?
Financiamos este projecto sozinhos há 25 anos. Tenho trabalhado para
fora e juntado o suficiente. A Roxanne trabalhou como arquitecta, mas
depois da crise do subprime é dificil para ela encontrar emprego.
Roxanne: Não temos nenhum financiamento externo. Desde
que fiquei desempregada que só angariamos dinheiro com as vendas dos
nossos livros e filmes, por isso todo o dinheiro vai para a divulgação
do projecto para conseguirmos escrever mais livros e realizar mais
filmes.
Jacque: Construímos dez edifícios sozinhos. A Roxanne fez o cimento sozinha.
Roxanne: Temos mais de 400 modelos e, até há pouco
tempo, havia voluntários que faziam animações para os nossos filmes a
partir dos nossos desenhos. Estamos também a pedir doações para um
filme, que achamos que será a melhor forma de divulgar o nosso projecto
ao público.

E qual foi a razão da vossa zanga com o Zeitgeist Movement?
Jacque: O Peter Joseph mostrou bem os problemas do
nosso país, dos bancos, do sistema da Reserva Federal e etc, mas quando
lhe perguntavam como resolver esses problemas ele não sabia o que dizer.
Então a Roxanne mandou-lhe o nosso livro e ele veio-nos visitar e disse
que ia tornar o Zeitgeist numa continuação do The Venus Project, mas
nunca nos perguntou se concordávamos com isso.
Roxanne: Não foi uma cooperação, ele apropriou-se do
trabalho do Jacque e divulgou-o como se fosse algo do Zeitgeist. E
depois começou a levar as coisas para direcções diferentes das nossas.
Ele divulgava os nossos desenhos e muitas das nossas ideias, mas
descartava outras e nós não queríamos o nosso nome envolvido naquilo.
Nunca tivemos nenhum apoio do Zeitgeist quando andámos a dar palestras.
As pessoas pensavam que estávamos a trabalhar juntos, mas não era uma
colaboração a sério.
Jacque: Nós temos soluções. Só mostrar o que está
errado não muda nada. Protestos não mudam nada. Se tens um movimento de
alternativa, tens que apresentar soluções alternativas.
Roxanne: Só és útil se tiveres os planos e o conhecimento para tornar as coisas reais.
Jacque: Trabalho nisto há 70 anos, é muito tempo. O Joseph apareceu a pensar que já sabia tudo.
Roxanne: Ele fez um bom filme, mas não tem um background como o do Jacque, não tem o que é preciso para tornar isto realidade.
Jacque: Já trabalhei com casas, aviões, automóveis. Sei como tornar isto realidade.
Roxanne: E o Jacque trabalhou com pessoas para as tentar mudar também.
Jacque: Cheguei a juntar me ao Ku Klux Klan e, num mês,
consegui dissolver o grupo. [NDR: Perguntei-lhes mais sobre este
episódio por e-mail, mas só me mandaram este link como resposta. Resumindo: parece que ele convenceu um pessoal do KKK de que estavam errados através de um mostra-e-conta.]

Muitos dos bairros planeados em França no pós-guerra também
aplicavam conceitos de arquitectura radicalmente diferentes do que
existia até à altura, mas em vez de solucionarem os problemas que
existiam, trouxeram uma maior taxa de criminalidade e uma maior
alienação aos seus habitantes. Não acham que o mesmo pode acontecer com o
vosso plano?

O que propomos não tem nada que ver com os projectos de arquitectos ou
com qualquer outro sistema social já proposto. O nosso plano leva em
consideração as razões da própria existência do crime e trabalha nas
suas raízes. É natural que a transição não seja calma, mas, no fim, a
direcção do The Venus Project trará muito menos corrupção, stress e
comportamentos aberrantes em comparação com qualquer outro sistema que
possamos imaginar.

Design por Jacque Fresco. Mais em thevenusproject.com

Qual é a vossa opinião sobre as smart cities já em construção, como o Planit Valley cá em Portugal?
A tecnologia é promissora, mas o desenho da cidade é caótico e não muito eficiente a nível energético.

Para terminar: há algum trabalho de ficção cientifica que tenha inspirado as vossas ideias?
Roxanne: O Jacque costumava dar palestras a escritores
de ficção científica na Califórnia. Diria mais que foi ele a inspirar
esses escritores e não o contrário.

ENTREVISTA POR LUÍS LAGO
IMAGENS POR THE VENUS PROJECT

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